“No tarot, a carta O Mago representa, além das habilidades comunicativas, a aptidão em aprender dentro de uma situação nova, diferente. Sendo a primeira carta, ela grita para que se aproveite as oportunidades, além de sinalizar a realização de seus objetivos. Ela vem para mostrar que você deve compreender o seu todo, o seu valor; mostrar que, no fim de tudo, você já possui dentro de si todas as ferramentas que precisa para continuar.”
Por Narú NarizinhoPrólogo
— Olá! Como posso lhe ajudar? — cumprimentou Robert, muito animado.
Aquele era seu primeiro cliente em muitos dias, o que o fazia temer que o ser tivesse entrado no lugar errado.
— Eu quero a cura pra minha falta de felicidade, para o amargor da minha vida — a criatura do outro lado do enorme balcão respondeu, com muita frieza.
Ele era de uma espécie irreconhecível para Robert. Tinha muitos pelos por todo o corpo, todos lisos e brancos. Uma mecha cobria a sua face, mas era possível identificar um focinho que se estendia, por alguns centímetros, para fora do rosto.
O cliente recostou seu braço no balcão, apoiando sua cabeça no que parecia ser sua mão direita, e um tipo de gosma começou a se espalhar por onde seu braço encostou. Robert então notou que todo o pelo daquilo estava totalmente ensopado.
— O que é isso? — o homem perguntou, apontando para a gosma com um nojo aparente.
— São minhas lágrimas — fungou —, elas vazam pelo meu corpo. É involuntário, me desculpe.
Robert deu de ombros.
— Vou ver o que posso fazer por você — disse —, mas nada garanto…
Ele se virou para uma enorme cristaleira de vidro. Dentro dela, uma variedade de líquidos ocupavam frascos redondos na base e finos no topo, eram poções. Cada uma tinha cores, vibrações e efeitos diferentes. O homem passeou seu dedo indicador, apontando para os vários frascos, parecendo procurar a opção ideal.
— Ahá! — exclamou.
Ele agarrou a escada deslizante, presa a um tipo de trilho instalado no chão e no teto daquele enorme lugar, e correu-a até alcançar a estante. Cuidadosamente, o mago abriu a porta da cristaleira. No topo, encontrou um frasco amarelo cintilante, que possuía um adesivo em formato hexagonal na frente.
— Tente isso aqui — Robert disse, enquanto voltava para o chão.
Entregou o frasco para o freguês, que violentamente arrancou a rolha. Ele virou todo o conteúdo disponível em sua boca, enquanto Robert observava aquela cena de olhos arregalados e coração partido. Não precisa tomar tudo! Essas poções dão trabalho para serem produzidas, pensou, revoltado.
O ser, após virar todo o conteúdo do frasco, jogou-o com força no chão, onde se espatifou em um milhão de pedaços. Robert deu um suspiro de desânimo. Alheia a sua reação, a criatura peluda limpou sua boca com a parte de trás do braço e soltou um arroto estrondoso.
— Isso estava realmente gostoso, mas como isso vai me ajudar? — perguntou, lambendo os beiços.
— Essa poção deve deixar sua mente mais leve, mais tranquila. Não garanto que você vá ficar mais feliz, mas pelo menos vai te manter fora da sua realidade por um período de tempo — explicou Robert.
— Bah, que tristeza... Acho que nada vai curar a podridão dos meus corações. Agradeço a sua sincera tentativa, mago. Agora, me vou.
O ser se levantou, derrubando litros e litros de lágrimas, que estavam acumuladas em seus pelos, no chão.
— Calma aí! Você ainda não pagou — gritou Robert.
— Ah, é pago? Quanto isso fica em moedas grilais? — a criatura se deteve de frente para a porta de saída.
Robert ficou em silêncio, não fazia ideia de que moeda era aquela.
— Tudo bem — disse o ser —, fique com quinhentas moedas. Eu não me importo de pagar a mais.
Robert assentiu, recebendo um pequeno saco marrom e pesado, eram as moedas. Eu acho que... talvez não tenha nascido pra isso, suspirou, ou não, vai ver só preciso de um tempo. Mas quem tomaria conta do boticário por mim?
Capítulo Único
Tudo estava muitíssimo bem, estava por entre palácios construídos sobre um bilhão de moedas de diversas dimensões diferentes; cada tijolo fora forjado sob o sol mais quente, dos planos existenciais mais quentes, durante os anos mais quentes.
E eu, no topo daquilo tudo, paralisado eternamente em uma refrescante piscina de obsidiana. Apesar de estar imóvel, sabia que tudo aquilo pertencia a mim e que ninguém ousaria tocar no que é meu. Meu fiel mordomo, Jeffrey, estava a meu lado, de onde, a todo o tempo, afirmava:
— Esta riqueza é toda sua, sire1. Ela é toda sua.
E eu sorria, quase gargalhava. Quase não conseguia acreditar que tudo aquilo era real. Até que... de repente, ouvi batidas fortíssimas, pareciam estar ao pé do meu ouvido, mas nada estava tão perto assim. O mundo ao meu redor começou a craquelar, a obsidiana ao meu redor se rachou como vidro, me libertando.
— Jeffrey, o que é isso? — perguntei.
— É tudo seu, sire. Tudo seu. — O homem respondeu calmamente.
— Não está ajudando, Jeffrey.
— Tudo se...
Antes que o mordomo pudesse completar sua frase, estiquei minha mão até sua boca, não aguentava mais ouvi-lo falar como um robô.
— Descanse, Jeffrey. Nos vemos amanhã — disse, afastando minha mão.
Ao ouvir minhas palavras, o homem derreteu como cera, mantendo sua expressão calma até o último momento. Levantei voo e observei os arredores de meus palácios. Não havia nada causando aquele som horroroso.
— Alguém está causando esse som horrível por aqui? — gritei do topo do céu, de onde todos podiam me ouvir.
Algumas pessoas chegaram a olhar para mim, mas deram de ombros e continuaram seus rumos. Foi aí que eu percebi que tinha razão. Não era real, era um sonho. Um dos bons, e alguém estava acabando com meu momento!
— É hoje que eu mato um! — rugi para mim mesmo.
O ruído não parava. Na verdade, ficava cada vez mais forte. Fechei meus olhos dentro do sonho e, com muita força, os abri. Agora estava acordado, raios!
— O que está acontecendo aqui?! — rosnei.
O som parou por um segundo diante de meu grito, mas por pouco tempo. Suspirei, eu só queria ter uma tarde de sono bem dormida pelo menos uma vez nesta década. Notei que ao meu lado, na cama, estavam três indivíduos. É mesmo, ainda estou no motel, lembrei.
— Vocês sabem o que tá rolando? Achei que tinha pedido uma porta à prova de ruídos — disse.
Aquelas pessoas eram bem diversas: um centauro masculino; uma mistura de kraken com… alguma coisa, tinha a pele completamente azul marinho e espinhos nas laterais dos braços; e, por último, uma kelpie rosa com cabelos finos acinzentados. Diante de minha pergunta, todos deram de ombros.
— Está certo, fiquem aí. — Levantei e tratei de vestir meu roupão roxo — Eu vou ver quem é este ser que tem a audácia de perturbar nosso sono!
Me aproximei daquela porta pintada de branco, que supostamente teria um feitiço que isolaria qualquer ruído. Me abaixei levemente para olhar pelo olho mágico, mas o que quer que estivesse do outro lado, o havia tampado com alguma coisa mística. Arrgh! Suspirei, irado. Abri boa parte das trancas, deixando apenas uma corrente que se prendia à porta e à parede.
Aproximei minha face do pequeno vão que havia aberto. Tinha a forma de um... humano? Não conseguia identificar muito bem a que tipo pertencia, parecia descender de alguma mistura entre espécies. O que quer que fosse, tinha a pele clara, barba e cabelos grisalhos, olhos prateados e uma manta marrom cintilante. Por baixo daquela manta, conseguia ver a ponta do que parecia ser um… vestido vermelho? Era um visual bem esquisito, mas um pouco nostálgico.
— Que que é, caceta? — disse com toda a grosseria que cativei durante os últimos minutos.
— Dharlie? É você? — disse a voz do outro lado.
Dharlie? Quem me chama de Dharlie nos dias atuais? Não só isso, mas aquela era uma voz estranhamente familiar, só não conseguia lembrar... quem era aquele?
— Sim? Quem me incomoda tão tarde? — perguntei.
— Tarde? São três horas.
— Três horas da...?
— Três horas da tarde.
— Exatamente. Agora me diga logo o que você quer e vá embora!
Aquele… encosto deu um passo para trás, parecia assustado? Talvez estivesse sendo muito rude com ele, mas acredito que tinha um bom motivo para isso.
— Sou eu, Robert — ele disse, após alguns segundos em silêncio.
— Robert?
— Isso! Você não se lembra?
Não, eu não lembrava. Todavia, como ele me chamava pelo meu nome e não pelo meu apelido, Darling, tive medo de dizer de cara que não o conhecia. E se for um negociante? E se se tratar de um assunto delicado? E se for relacionado ao motel? Os pensamentos correram minha mente.
— Só um momento, Robert. — Acalmei minha voz.
Me afastei da porta, tirei a corrente que a segurava e então a abri por completo. Com uma mão no queixo, estudei Robert dos pés à cabeça. Nope, nenhuma lembrança sequer, e olha que eu sou bom em lembrar das coisas.
— Argh — ele suspirou — só um momento.
Ele lambeu seu dedo indicador e o médio e então, abruptamente, tocou minha testa, invadindo meu espaço. Quando ele fez aquilo, senti minhas pupilas dilatarem, e meus olhos se arregalaram descontroladamente. Diversas imagens e sons começaram a aparecer em minha mente. Era diferente de qualquer coisa que eu já tivesse sentido.
É comum que magos construam projeções mentais, quando requisitados, mas são projeções de coisas nunca vistas pela pessoa sob o efeito do mago, visões novas. Agora, era como se Robert fizesse imagens e sons... memórias, reaparecerem de repente, como quando a gente vai limpar a casa e acha coisinhas que imaginávamos jamais ver de novo.
— Robert! — disse animadamente, me recordando dele.
Por um momento, quase abri meus braços para um abraço, se não odiasse os vindo de ocasiões sociais desse tipo. Abraços, comigo, só com intimidade ou em momentos meus muito sensíveis.
Ele deu um passo pra trás, assim que percebeu que eu havia, de fato, lembrado dele. Não entendi, a princípio, quando ele recuou, mas, alguns momentos após as memórias se instalarem em minha mente, foi como se minha cabeça parasse no lugar exato em que estava antes de sua chegada no dia de hoje. A diferença é que, além de lembrar dele, também lembrei do sentimento que sentia por ele antes de o esquecer: ódio.
— Seu tapado, canalha, cafajeste, patife… sapeca! — gritei, quase tascando um tapa na sua face.
— Eu sabia que a sensação de nostalgia duraria pouco — disse, dando um pequeno sorriso.
— Por onde você esteve? Todos pensamos que você tinha morrido.
— Eu avisei que iria para uma dimensão distante, onde o tempo passa de forma diferente. Vocês sentem como se não me vissem há um século, eu sinto que faz cinco meses. — Ele fez um cinco com os dedos.
— Por isso esse vestido brega?
Robert franziu o cenho e se olhou, parecia surpreso. Talvez triste com o comentário.
— Não é um ves… — tentou dizer.
— Mas enfim, agora sem nenhum ressentimento... O que você está fazendo aqui? — perguntei, interrompendo-o. — Não deveria estar em....
— Em Botimago? Pois é. Eu vim aqui realmente falar sobre isso.
— Botimago? Que é isso?
— O… boticário?
Dei de ombros, não fazia ideia do que estava falando.
— Estou falando do Arcano. — Ele disse, com a voz claramente decepcionada.
— Você chamava o Arcano de Botimago?! Hahaha que ridículo!
Caí em uma das minhas gargalhadas mais gostosas da vida naquele momento. Se eu reviver esse nome em minha mente, sei que ainda consigo tirar umas boas risadas.
Continuei rindo, o estômago chegando a doer.
— Parece que foi um livramento, então, Pandora ter rebatizado o lugar!
Ao falar isso, percebi que a face do mago era de dar pena. Sua expressão era séria e fria, me observava com quase um desgosto por sua própria existência. Não esboçava uma risada sequer, parecia que o nome era algo importante para ele. Decidi então que ele merecia um pouco de respeito — mas só um pouco mesmo.
— Bom, entre, entre, não sei o que ainda fazemos aqui no corredor. — Falei, interrompendo minha risada e limpando uma lágrima de riso do meu olho esquerdo.
Assim que adentrei novamente o quarto, vi aqueles três seres seminus em volta da cama, uma de braços cruzados, outro sentado, outra com as mãos na cintura. Observavam atentamente o que estava acontecendo. Cacete! Esqueci desse povo.
— Calma, calma! Melhor você não entrar agora, espera só um pouquinho. — Eu o parei, gesticulando urgentemente para que não avançasse.
— Imaginei. Sem problemas, eu espero — Robert respondeu, claramente ainda abatido pelas risadas.
***
— Ah sim, podem ir pelo corredor, sim. O mago não é um problema. — Respondia a uma pergunta do centauro. — Ele é um… antigo amigo? Sei lá.
Todos já estavam arrumados, aguardavam um tipo de aprovação minha para que pudessem sair. Além disso, rondava o medo de Robert ser algum tipo de perigo. Contudo, após minha palavra, os três saíram apressados pela porta. Fui então para o banheiro, para terminar de me arrumar. De lá conseguia ouvir os passos deles ficando mais distantes.
Me observava no espelho com muito orgulho, sempre fui um pitel, mas nesse dia eu estava demais! Passei alguns produtos sobre a minha pele rosa, um pouco de hidratante também nos chifres que cresciam na testa, já que eles eram cobertos de pele. Mergulhei minha mão no gel e passei em meus cabelos negros, chamuscados em prata, com vontade, como se meus dedos fossem um pente.
Com meu topete pronto, a pele brilhante como meus olhos dourados e os chifres bem cuidados, ajustei por fim minha gravata. Vestia naquele dia uma camisa social vermelha, junto de um colete preto e uma gravata roxa, bem escura. Quando terminei de me arrumar, ainda me observei um pouco no espelho, mandando um daqueles beijos de chef de cozinha. Estava maravilhoso… não, estava estonteante!
— Ahhh, sim senhor, hoje eu vou agradar alguns globos oculares! — disse para mim mesmo. — Começando por...
Saí do banheiro sem completar a frase, me deparei com o mago sentado na ponta da cama. Uma invasão bem desagradável, uma visão mais desagradável ainda.
— Precisava se produzir tanto assim? Eu só quero conversar — disse Robert.
— ...Você.
— Eu? Eu o quê?
— Esquece.
Eu peguei uma mesinha de madeira, que estava debaixo da janela do quarto, derrubei com força as plantas de plástico que estavam em cima dela, e coloquei-a de frente pro mago. Depois, arranjei um pequeno banco de madeira que, por algum acaso, estava no banheiro e o posicionei de frente para a mesa.
— Você bebe vinho? — perguntei.
— Às vezes, sim.
Ainda de pé, me dirigi até o pequeno frigobar que ficava no canto direito do quarto, bem perto da cama. De lá, tirei uma garrafa de vinho e duas taças. As taças ainda estavam sujas de vinho da última pessoa que havia bebido nelas. Posicionei as taças e o vinho sobre a mesa.
— Troca, você vai pro banquinho e eu fico com a cama — eu disse, dançando meus dedos entre os dois lugares.
O mago deu de ombros e assim o fez. Sentei no lugar onde ele estava anteriormente, com as pernas cruzadas, e tentei arrancar a rolha da garrafa. Pelo canto de meus olhos, pude perceber Robert olhando para a taça com nojo. Então, de um segundo pro outro, com o sussurrar de algumas palavras e o mover de sua mão esquerda, a sua taça estava como nova. Quase tudo pronto, se não fosse por aquela rolha miserável.
O mago estendeu sua mão com unhas longas — e nojentas — e resmungou enquanto produzia um movimento de alavanca. Era como se pedisse que eu entregasse a garrafa, então eu o fiz. Achei que ele faria algum tipo de feitiço para abrir a garrafa magicamente, mas ele só meteu a rolha na boca e a arrancou com força, produzindo um agradável plop! Depois disso, ele nos serviu. Brindamos e demos o primeiro gole.
— Ahhh sim, meu favorito. — Eu disse. — Sabia que ele é feito com o sangue expelido por um filhote de um tipo de pássaro que só vive nos picos mais altos de Yahweh?
O mago gelou, arregalando os olhos. Era a primeira expressão forte que ele me dava naquela tarde. Antes disso, me perguntei se ele ainda tinha sua alma, se não a tinha vendido para algum demônio qualquer. Considerava essa uma das possíveis questões que ele poderia querer resolver comigo.
— Estamos bebendo... filhotes de pássaro!? Pintinhos!? — exclamou.
— Óbvio que não! Sou um demônio, mas não sou um ser tão cruel a esse ponto — retruquei, ofendido, tomando mais um gole. — O sangue é expelido naturalmente, durante as primeiras trocas de penas.
O mago assentiu, deixando seus músculos retraídos, e voltou a beber de sua taça.
— Afinal, o que te traz aqui? — perguntei de uma vez.
Robert repousou sua taça na mesa e, com uma das mãos, pegou um pequeno aro em sua manta. Ele o limpou brevemente no tecido e, então, o mergulhou no vinho. Engraçado ele ter tido tanto nojinho da taça suja e achar isso tão… natural. Por fim, tirou o aro do vinho e o posicionou na mesa.
Da parte interior do círculo, um tipo de bolha começou a surgir, cresceu bastante, se igualando em altura às taças na mesa, que eram bem longas. A bolha parecia uma daquelas de sabão, mas no tom roxo avermelhado do vinho. Nela, eu conseguia ver nitidamente meu reflexo. Aquela não era uma bolha normal.
Ele grunhiu em desaprovação, enquanto fitava sua criação. Com um estalo, mudou aquele forte escarlate para algo quase transparente. Grunhiu de novo, mas agora em aprovação.
— Eu gostaria que você visse o que aconteceu. Eu não sei quão interessante vai ser essa experiência pra você, mas precisava compartilhar com alguém — ele disse. — A única pessoa que penso que pode me entender é você.
— Por que eu?
Ele manipulava a bolha, com suas mãos a uma pequena distância. Em um filtro avermelhado, imagens e sons começaram a surgir.
— O Arcano não é mais seu, Robert. A conexão mágica que existia entre vocês se encerrou depois que você o deixou comigo. — Uma voz feminina soou para fora da bolha. — Aceite isto, e o bar lhe permitirá entrar sem nenhum problema.
— Ah, é isso então? — gargalhei. — Ora, que prazer eu vou ter assistindo isso!
— Você ainda está sentido por eu ter tirado o Arcano de você? — o mago perguntou.
Engasguei com o vinho quando ouvi aquelas palavras.
— N-não — disse, entre uma tosse e outra —, não exatamente. Mas eu acho que vai ser divertido ver você no lugar em que eu estive.
Ahhh, sim, como foram bons os tempos em que o Arcano era o meu bordel, meu querido bordelzinho. Tantas coisas aconteceram naquele período, conheci tantas pessoas com quem até hoje tenho uma conexão tão forte! Foi um choque enorme quando senti a minha conexão com o lugar se dissipar. Eu zombava da cara desse jovem-velho, mas conseguia ver claramente pelo que ele estava passando.
— Ah, sim, aqui está — disse ele, com os olhos vidrados na bolha.
— E aí? Quero ver você sendo chutado, me mostra aí.
— Bom, vamos começar pelo... começo.
***
O mago mexeu suas mãos com muita delicadeza e então, de uma mancha na bolha, surgiu uma imagem. Era ele, Robert, trabalhando por trás do balcão do antigo boticário, que hoje é o bar Arcano. Ele limpava a mesa furiosamente, alguma coisa tinha acabado de molhar, e muito, aquele lugar. De cara fechada, como o céu prestes a chover, ele esmagava o pano contra a madeira como se quisesse quebrá-la.
Então, interrompeu seu movimento quando uma mulher de cabelos roxos entrou pela porta. Ela caminhava lentamente em direção ao balcão, era impossível não notar o som de suas joias batendo entre si.
— Oh, Pandora! Que bom que você chegou.
Ele rapidamente retirou o avental branco que vestia, manchado de algum líquido rosado que parecia xarope infantil. Após jogá-lo de qualquer jeito em cima do balcão, adiantou o passo até a mulher, abrindo seus braços para oferecer um abraço. Porém a garota se afastou, levantando as mãos em um sinal de “por favor, não”.
— Talvez depois — disse, respeitosamente.
— Ah, sem problemas — respondeu o mago, tentando disfarçar sua expressão desajeitada.
Nesse momento da visão, abafei uma gargalhada com a mão. Estava tentando não ser tão rude com Robert... pelo menos enquanto ele não merecesse.
— Então? Está pronta pra tomar conta dessa belezinha? — perguntou, batendo de leve no balcão.
— Acredito que sim, mas qual é a proposta?
— É simples, eu preciso sair em uma viagem, um tipo de caminho espiritual só para magos, sabe como é. Só tem uma questão...
— E qual seria?
— No lugar em que eu estarei, o tempo passa muito diferente daqui. Não sei exatamente quão diferente, mas da última vez, saí por dois minutos e quando voltei já tinham se passado alguns meses. O pior é que isso é muito variável, já aconteceu de eu ir, passar um dia e voltar com menos meses que dessa vez em que passei dois minutos. É complexo, até mesmo para minha mente de mago.
Pandora acenou com a cabeça, absorvendo toda informação.
— E sobre o funcionamento do lugar? Como é a interação com os clientes? — a mulher perguntou.
— Ah, é simples, muito simples.
Pandora levantou uma sobrancelha.
— Mas esse não é o Botimago? O boticário multidimensional? — perguntou.
— Sim...
— E como que um lugar tão vasto pode ser simples?
O mago hesitou por um instante, mas após um suspiro fundo, disse, desanimado:
— Veja bem, não são muitos clientes que passam por aqui. Geralmente quem vem são apenas os mais fiéis, recorrentes. O maior problema que você pode ter é alguma poção acabar. Elas são muito, muito difíceis de produzir, são necessárias longas viagens a diversas dimensões para recolher os ingredientes, e algumas só podem ser produzidas por feiticeiros específicos, em situações específicas.
Pandora parou de ouvir quando notou que aquilo não respondia à sua pergunta. Começou a olhar ao redor e, pela sua expressão, ela com certeza pensou do mesmo jeito que eu no que dizia respeito ao estado do antigo Arcano — me recuso a chamá-lo de Botimago.
O lugar parecia um beco sem saída, entupido de poeira e teias de aranha. Alguns frascos de poção vazios chegavam a ter musgo ao redor, de tanto tempo sem serem lavados, isso sem contar os diversos móveis precisando de troca ou reforma. Era inacreditável que o mago ainda abrisse aquela joça, que parecia completamente abandonada. Olha como massacraram minha criança, pensei, com uma tristeza genuína.
— Certo — Pandora concordou, sem realmente prestar atenção no mago. Ainda olhava ao redor. — Diga-me, o que eu posso e não posso fazer enquanto você estiver fora?
— Bom, tendo em vista que não sei quando voltarei, você meio que pode fazer o que quiser com o lugar, desde que não mude muito a estrutura... — Robert estava claramente cauteloso.
— Tudo bem, eu aceito sua proposta — Pandora se permitiu dar um breve sorriso.
— Ótimo! — Robert estendeu sua mão. — Um aperto de mão, você aceita?
Pandora fez uma cara sem jeito, parecia não querer nem o aperto de mão, mas também não queria recusar.
— Tudo bem, fica pra próxima. Você tem algum compromisso hoje? — Robert perguntou.
— Não, não. Eu só tinha mesmo que vir aqui.
— Ótimo, acredito que possa começar já, então? — o mago mantinha seu sorriso. E eu comecei a achar aquilo asqueroso.
— Sim, claro. Só me diga o que preciso fazer, você ainda não fez isso — sua voz agora estava firme, séria.
O mago, notando o tom da mulher, revirou os olhos. Que panaca, pensei.
— Então, ouça bem: você só precisa atender os clientes. Tudo está minuciosamente marcado com etiquetas, deixei alguns pequenos manuais de instrução perto dos lugares que imaginei que você talvez tivesse dificuldade, e também tem a Margot, minha parceira do boticário. Está bem agora?
— Uhum. — Pandora assentiu, dando de ombros.
— Ótimo, ótimo.
O mago se afastou do balcão e, em um lugar sombrio no meio do salão do boticário, começou a proferir palavras em uma língua que nem eu conheço. Depois, mexeu os braços em um pêndulo, de olhos fechados. Seus cabelos grisalhos começaram a balançar e faíscas começaram a sair da parede. De repente, um enorme buraco com as bordas azuladas se abriu. Era um portal interdimensional diferente dos que já haviam por lá.
— Confio em você, Pandora! Não se esqueça, qualquer coisa fale com Margot. Nos vemos em breve, espero. — Acenou.
— Até logo, pode deixar — a mulher respondeu, acenando de volta.
Robert se virou em direção ao portal e o atravessou, foi possível ver o mago desaparecer por dentro do buraco na parede. Quanto mais longe ele estava da entrada do portal, mais o portal diminuía, como se acompanhasse o seu movimento. Após alguns segundos, o mago desapareceu, e junto dele, o portal.
***
Um nevoeiro tomou conta da bolha por um tempo. Então o mago moveu suas mãos, fazendo a imagem retornar vividamente. Mostrava a mesma passagem na parede, mas que agora parecia se abrir em um lugar diferente... Um lugar familiar para mim.
— Uau, esse é o Arcano de que ano? — perguntei.
— Hoje de manhã — Robert respondeu, dando um gole no seu vinho.
— Fuuu! — suspirei, embasbacado.
Fazendo uma comparação direta daquela maneira, parecia um lugar completamente diferente. Eu já tinha visitado o Arcano depois que ele se tornou, de fato, o bar Arcano XXI. Mas, ainda assim, aquilo era algo quase que completamente novo pra mim. Por um tempo, me perguntei se ele não teria entrado em algum momento diferente no tempo do lugar, mas não. Era o Arcano XXI.
Era um contraste surreal, o boticário na época em que foi passado para Pandora parecia um cenário de história de terror. Conseguia imaginar aquele lugar sendo fechado pelo descuido do mago, muito facilmente. Mas agora? Agora era algo completamente novo, se não fosse o enorme tronco da árvore que fica atrás do balcão, da qual vive o Arcano XXI, não conseguiria acreditar que era o mesmo lugar.
O bar estava cheio de mesas com seres plurais até onde os olhos podiam ver, bebendo, comendo e se divertindo. No balcão, um barman trabalhava, enquanto outro funcionário servia as mesas. Luzes preenchiam o ambiente de modo a fazer lembrar que o lugar era vivo, era uma experiência mágica! Sem falar na banda que tocava em um palco limpíssimo e cintilante, que se encontrava bem ao lado do lugar onde o mago produzira seu portal interdimensional. O show era o centro das atenções.
No palco estavam três sereias e um tipo de molusco laranja gigante, com um único olho e quatro tentáculos. Ele não vestia roupas, usava apenas um óculos escuros, que tinha duas lentes, apesar de ele ter só um olho. Já as três sereias, se vestiam exatamente iguais: óculos escuros e uma roupa completamente preta, a vocalista vestia, ainda, uma boina no mesmo tom. Talvez se olhasse do lado de fora, assumiria que elas tinham saído de um enterro. Era mais fácil diferenciá-las pelas cores de cabelo.
A sereia de cabelos negros era a vocalista, tinha uma voz potente e picante, que me arrepiava os pelinhos do braço toda vez que segurava as notas. Ocasionalmente, ela balançava um pandeiro ao redor do microfone, causando um efeito multiespacial no áudio. A de cabelos ruivos, além de fazer os vocais secundários, tocava uma guitarra estalada; ela tinha praticamente um tapete inteiro de pedais com infinitos efeitos. A de cabelos rosa parecia brincar em seu enorme set de teclados sintetizadores, de diversos timbres que preenchiam todo o espaço com sons psicodélicos e beats que imitavam uma bateria. Por fim, o molusco dedilhava um baixo com dois tentáculos e, com os outros dois, tocava um violino quando era pertinente.
A banda tocava um tipo de indie rock psicodélico, eu fiquei simplesmente apaixonado. Já o Robert da bolha... não parecia nada feliz com o que via. Estava de braços cruzados, parecendo incomodado. Ele marchou até o balcão, atravessando todo o lugar lotado pelos clientes. O balcão era um pouco mais silencioso, embora não completamente. Alguns seres de grande porte estavam por lá, provavelmente evitando a música. Pouco tempo após alcançar um banco, Robert foi atendido por um moço de pele negra clara e cabelo encaracolado escuro, ele era impecável. Ah se eu conhecesse esse aí...
— Com licença, com licença. Pode me confirmar onde estou? Acho que entrei no lugar errado — o mago forçou um riso.
— Claro, você está no bar Arcano XXI! — respondeu o moço, com um enorme sorriso. — Como posso lhe servir hoje?
Robert tinha congelado, sua expressão dizia milhões de coisas enquanto não dizia nada. Sua pálpebra começou a tremer, e com um suspiro, o homem criou coragem para perguntar:
— Esse não é o Botimago?
— Botimago? Que é isso? — o barman fez um rosto confuso, parecia desconfiar se aquele nome era algo sério ou uma piada.
— Espera, tenho uma pergunta melhor. Pandora está por aqui?
— Sim! Ela é dona daqui. — O sorriso do moço retornou instantaneamente ao som do nome familiar.
— É possível que eu possa vê-la? Diga que sou eu… Robert.
— Bom, ela não costuma receber muitas visitas, mas vale a tentativa. Já venho.
O barman se virou e, após atravessar o balcão, entrou por uma porta, onde desapareceu da vista de Robert. Enquanto esperava, o mago batia os dedos na madeira, impaciente. Girou na cadeira tentando se distrair e acabou se voltando para a banda.
Elas tocavam agora um som progressivo, que estourava em um refrão com guitarras e pratos de bateria envolventes, com um toque espacial sintetizado de arrepiar os pelos do corpo; ao menos, arrepiou os meus. As duas sereias que tocavam instrumentos cantavam em coro, ao fundo, a palavra “transversal”, enquanto a vocalista solava os versos principais. Os instrumentos seguiam um ritmo padrão que virava a cada quatro frases instrumentais. Elas cantavam:
“Transversal, transversal,
O sal, queima os olhos,
Como um lembrete,
Que o mar,
Transversal, transversal,
Não é deles,
E as ondas quebram,
Pra recomeçar,
Transversal, transversal...”
Os instrumentos diminuíram sua intensidade, acompanhando as batidas de bateria, que agora começava a diminuir seu tempo, acompanhando a voz.
“Como o tempo,
E o espaço...
Sou, uma onda,
Uma experiência atemporal”
No fim, todos os instrumentos foram à loucura, tocando diversas notas em uma velocidade frenética; os beats estouravam como uma metralhadora. Apesar do caos, eles se encontravam na pulsação. A batida liderou em uma quebra no tempo que soou bastante como o clássico som de fogos: parapapá…pá! Todos no bar bateram palmas intensamente, com assobios e berros de alegria.
A música era realmente muito agradável. Eu, pelo menos, estava me deliciando intensamente, me dava muita vontade de ouvi-las ao vivo. Não conseguia dizer se Robert, tanto da bolha quanto de fora dela, estava gostando, ele observava de braços cruzados e não proferia uma palavra. A vocalista olhou pro resto da banda, todas estavam suadas e com a respiração pesada, mas sorriam muito umas para as outras, parecendo estar se divertindo tanto quanto a platéia.
A guitarrista levantou o indicador para a vocalista, sinalizando que precisava trocar de pedal e fazer algumas configurações básicas. A vocalista aproveitou o tempo em silêncio para conversar com o público.
— Uau! Como é maravilhoso tocar no Arcano XXI. O público daqui é uma de-li-cinha! — brincou, lambendo os beiços, o que fez a platéia retornar ao estado de alegria e agitação, com os aplausos e gritos. — Não se esqueçam da gente, do nosso nome: Mermaids Cursed U2! Porque a gente não vai esquecer vocês — disse, finalizando seu discurso com uma piscadela.
O público voltou a aplaudir fortemente, aparentemente, todos ali amavam a banda, e com razão. O mago era uma gota contra a maré, assistindo com cara de paisagem. Ouvi, ao fundo, a voz da pessoa que o atendeu crescer e o mago se virou novamente para o balcão, bem a tempo de assistir o barman, Pandora e Margot atravessando a porta.
— Oh, Robert. Olá! — disse Pandora animada, se aproximando do mago e acenando.
— Há quanto tempo, hein? — o mago disse, retribuindo o cumprimento.
— Quando Romeo me disse que você estava aqui, eu nem consegui acreditar! Chamei até Margot para vir conosco.
— Margot! Quanto tempo! — disse Robert, acenando.
Margot era muito pequena, sua cabeça não batia nem na barriga de Pandora, que também não era tão alta. Era uma pixie. Ela estava de cara fechada, mas com uma sobrancelha levantada, parecia realmente surpresa com a presença de Robert, só não muito animada. Tanto é que permaneceu em silêncio, apenas levantou as duas sobrancelhas simultaneamente para o mago, como um “E aí ”. Logo após ver o mago, voltou para o lugar de onde havia vindo, deixando apenas os três no balcão.
— A gente achou que você não ia mais voltar. Aaah, foram tantas as mudanças que fizemos enquanto você esteve fora, dê uma olhada! — disse Pandora, bailando seu braço pelo bar, orgulhosa. Seu movimento produzia um som estridente devido as suas pulseiras.
— Eu... vi — o mago engoliu em seco.
— Vou ser honesta, antes de você me passar o bar, eu achava que isso aqui era um buraco perdido, sabe? Nunca iria imaginar que um dia poderia se tornar tudo isso. — Pandora parecia quase emocionada — Nunca disse isso pra ninguém, mas eu sinto que, desde que deixei minha… vida antiga… para trás, o Arcano vem me chamando. Eu tinha minhas dúvidas, não entendia como um lugar poderia me chamar. Hoje... hoje vejo que foi assim, esse lugar me chamou. É meu dever estar aqui e agora.
Robert esfregava seus dedos, parecia nervoso. Só que Pandora não tinha dito nada demais, estava compartilhando uma boa experiência! O que será que se passava na cabeça do jovem-velho?
Ele permaneceu em silêncio, parecia ponderar o relato de Pandora. Sua boca, às vezes, ameaçava se mexer para uma resposta, mas sempre desistia no meio do caminho.
— O que foi? Tem alguma coisa te incomodando? — perguntou Pandora, ainda alegre.
— Não exatamente, estou apenas aguardando — o mago respondeu.
— Aguardando? Aguardando o quê?
— Bom, eu carrego comigo um feitiço nostálgico. Toda vez que saio da dimensão de onde vim, as pessoas ao meu redor são consumidas por uma nostalgia, uma saudade, que nem sempre é verdadeira. Eu e você, por exemplo, nunca tivemos muita intimidade, mesmo assim, sinto que você está me tratando como um amigo distante. Estou certo de que é parte do feitiço de nostalgia.
— E o que acontece quando ele acaba?
— As pessoas ficam realistas, me tratam do jeito que me tratariam normalmente.
— Quanto tempo demora até ele acabar?
— Só um momento...
O mago colocou a mão dentro de sua túnica e de lá tirou uma ampulheta. A ampulheta tinha uma cor preta, era cintilante. Dentro dela, um líquido esverdeado vibrante estava completamente na parte de baixo, indicando que o tempo havia acabado.
— Estranho, já devia ter acabado — disse o mago.
— É real, Robert — afirmou Pandora. — Sei que não tivemos muito espaço para termos intimidade, mas eu sinto algo por você.
— Jura? O quê?
— Um alívio. Por você ter me permitido atender ao chamado do Arcano sem problemas. Margot me falou sobre o antigo dono, o demônio Darling. Sobre como ele atazanou sua vida após você "tirar" dele o Arcano.
Um sorriso se abriu em minha face. Eu sentia nostalgia daqueles tempos, éramos como gato e rato. E olha pra nós agora, dividindo um vinho, assistindo algo que parecia quase um filme. Uma sessão da tarde em meu motel com quem um dia eu considerei ser meu inimigo! Que deleite.
— Mas você... não — Pandora continuou. — Você foi gentil, me deu de bom grado. Sequer duvidou que eu conseguiria tocar o Arcano pra frente, você apenas me entregou e o próprio Arcano XXI me ensinou a tomar conta dele com as pequenas anotações carinhosas.
— Pandora... — A voz de Robert era tímida.
— Calma aí, já sei! Romeo, prepare para nós um drink do mago!
Imediatamente, o barman piscou e estalou os dedos em direção a Pandora, então, se apressou para preparar o drink.
Os olhos do mago começaram a perder a cor, ele tinha algo entalado na garganta, era visível. Não algo físico, claro, mas queria dizer alguma coisa. A banda começou a tocar outra música, uma bem alegre e corrida, aquilo chamou a atenção dos dois.
— Elas são incríveis, não são? — comentou Pandora.
— São... sereias.
— Qual o problema?
— Você não teme que elas encantem seus clientes? Que encantem você?
— Não, elas são diferentes. A vocalista não tem poderes. Além disso, são bem gente boa — explicou Pandora. — E mesmo que não fossem, eu não seria afetada, então não seria difícil resolver a situação.
— Entendo — respondeu Robert, embora ainda parecesse confuso.
O mago observava a banda e a Pandora de forma periódica. Eu conseguia ouvir alguns grunhidos vindos dele, o homem estava claramente incomodado com alguma coisa. O que diabos estava pensando? Por que caceta não dizia logo? Aliás, por que não dizia algo de fato?! Parecia um cachorro com o rabo entre as pernas. Sua atitude estava começando a me deixar irritado.
— Para isso aí — falei, deixando minha raiva transparecer.
— Qual o problema? — perguntou Robert, afundando seu dedo na bolha, paralisando a cena.
— Você enrola demais! Não dá pra ir direto ao ponto?
— Achei que fosse interessante lhe mostrar tudo.
— Nã-ã! Adianta isso aí que eu quero ver o cabaré... digo, o bar pegando fogo!
— Se você diz...
O mago girou seu dedo, que ainda estava dentro da bolha, e então as imagens começaram a correr. Ele parou em uma cena em que Pandora tinha uma expressão profundamente amarga. Parecia estar prestes a arrancar sangue da cara de alguém... sendo esse alguém Robert, o que tornava tudo ainda melhor.
— O Arcano não é mais seu, Robert. A conexão mágica que existia entre vocês se encerrou quando você o deixou comigo — trovejou, expulsando-o do bar.
Com uma postura firme e intimidadora, a mulher parecia guiá-lo — parecia, pois, na minha visão, aquilo era mais encurralar. O mago recuava, sem virar as costas para Pandora, quase tropeçando entre seus próprios pés.
— Aceite isto, e o bar lhe permitirá entrar sem nenhum problema. Enquanto você continuar mentindo para si mesmo, as nossas portas estão fechadas pra você. — Sua voz era pesada.
— Não, pera lá! — gritei impaciente, fazendo com que o mago interrompesse a imagem no mesmo instante.
O mago suspirou, desanimado.
— O que há? Achei que era isso o que você queria.
— Eu quero mais! Quero ver você dando seu papo furado e sendo destruído por ele. Quero que volte na parte em que seus sentimentos mais repulsivos ficam à mostra, onde você é vulnerável, quero te ver… — Me interrompi quando ouvi o que estava dizendo.
De repente, notei o quanto eu estava exaltado. Meu corpo ardia, como se uma chama dentro de mim tivesse se acendido. Aposto que se tocasse em mim, Robert queimaria sua mão. De meu nariz, saía uma fumaça com um cheiro forte de enxofre, meus olhos estavam arregalados e cada músculo de meu torso estava tenso.
Notando minha emoção, pus a taça de vinho de lado e tentei uma técnica de respiração que aprendi em uma viagem espiritual feita há alguns milênios atrás, esfriando meu corpo e retornando a um estado de espírito socialmente agradável.
O mago, naquele momento, me observava com olhos apreensivos.
— Estou começando a achar que isso aqui não é só sobre mim — disse, com calma.
Bufando, arrumei meu topete, me acalmando mais um pouco antes de respondê-lo.
— Nunca foi. Achei que você estivesse ciente disso — falei, suspirando. — Pra mim sempre foi muito óbvio.
Robert começou a coçar sua barba rala abaixo do pescoço, ainda em silêncio.
— Quando o Arcano decidiu ficar com você, foi como se tirassem de mim um enorme pedaço de meu corpo, uma extensão minha. Ver você passar pela mesma coisa até me animou, mas, no fim, acho que não vou ter o prazer que achei que teria — continuei. — Talvez, por algum momento, eu tenha pensado que essa história de você perder o Arcano fizesse com que eu o tivesse de volta. Ou talvez sua presença, com todo esse lance de feitiço nostálgico, tenha causado em mim essa... essa nostalgia forte e ilusória. Esse tempo já se foi há séculos, e achei que eu já estava ciente disso.
Fiquei em silêncio, observando meu reflexo na taça de vinho. Robert também ficou quieto enquanto pôde, respeitando meu momento reflexivo.
— Você precisa de um abraço? — ele perguntou, inconvenientemente.
Magos são todos iguais, não conseguem parar de bancar os sabichões! Sempre acham que têm a solução consigo, não conseguem respeitar um momento de silêncio por muito tempo porque suas cabecinhas não aguentam ficar sem ter uma saída por onde organizar seus pensamentos! Eu logo pensei: Não, não quero a droga do seu abraço!
— Quero — respondi prontamente.
O mago se aproximou devagar e me abraçou. Eu sei que eu estava com raiva, mas acho que minha língua não acompanhou meus pensamentos. Talvez estivesse sob um feitiço, sei lá! Mas eu realmente precisava daquele abraço. Pelo menos, senti que precisava no momento em que o recebi.
Robert se afastou de mim lentamente, ainda com a mão em meu ombro.
— Eu tinha minhas dúvidas quando cheguei aqui, mas agora eu sei que vim ao lugar certo — o mago disse. — Se não se importar, eu também gostaria de compartilhar um pouco de minha sinceridade contigo.
— Vá em frente — bufei.
— Eu posso ser um mago hábil, já estudei séculos e séculos de diversas literaturas diferentes, mas para os magos que se dizem puros, eu sempre vou ser um bastardo. Só porque minha mãe, que é da espécie original dos magos, se casou com um humano. — Seus olhos estavam molhados. — Quando recebi o boticário, aquela foi a primeira vez que um daqueles magos da legião me olhou e disse “Ei, você está fazendo algo certo”. Ter aquela aprovação foi tão... tão especial. Então, quando comecei a sentir o lugar se desvencilhar de mim, tentei fugir disso. Deixei com Pandora, pensando que poderia voltar algum tempo depois e só… continuar de onde parei.
Ele coçou os olhos, fungando de leve.
— Eu sei como é isso, foi muito difícil pra mim me desvencilhar dos outros demônios. Criar e viver sob minhas próprias regras, decidir o que realmente faz bem pra mim — eu disse. — Você já pensou nisso? Em seguir o seu próprio caminho?
— Todos os dias, antes de dormir... É só que eu sinto tanto medo, entende? O que eu vou fazer agora? Como vou chegar na bancada de magos e dizer “eu perdi o boticário”?
— Tem certeza que você perdeu alguma coisa?
— Como assim?
— Isso é algo que eu refleti com o passar dos anos: o Arcano não tem dono. Ele é praticamente um ser ciente, ele não é de ninguém, ele simplesmente escolhe novas pessoas para direcionar seu caminho. Nós preparamos o espaço e as pessoas dão vida.
O mago me fitou em um silêncio quase ensurdecedor, com os olhos fixados nos meus. Parecia ter um turbilhão de coisas passando em sua mente depois que eu disse aquilo. Ele balançava a cabeça ocasionalmente, como se respondesse a si próprio.
— O Arcano é uma experiência — continuei. — Uma experiência pra todo mundo. Tanto eu quanto você não temos mais nenhum poder sobre o lugar. De certa forma, nunca tivemos. Mas… a gente ainda pode ir lá mesmo assim e, nos dias atuais, até tomar uma cerveja.
Robert seguia em silêncio, mas era nítido que me ouvia.
— Então, assim... aquela aprovação que você sentia? Ela nunca foi exatamente real. Era só alguém que te achava legal por estar à frente de um lugar tão especial. Além disso, você não precisa da aprovação de ninguém. Eu sei que é gostosa a sensação, mas, no fim do dia, é completamente irrelevante. O que você vai fazer com ela, sabe?
O mago suspirou, fitando o chão. Parecia processar toda aquela informação. Ele esfregava os próprios dedos, suados, movia os lábios sem dizer nada. Ficou assim um tempo.
— Você quer saber o resto da história? — perguntou, cortando o silêncio.
— Sabe o que eu realmente quero?
Ele levantou uma sobrancelha como resposta.
— Eu quero visitar o Arcano. Eu quero olhar o lugar, visitá-lo como se visita um velho amigo, tomar uma e voltar feliz pra casa. Deixar o que passou pra trás.
O mago sorriu.
— É, essa parece uma ótima ideia — ele respondeu. — Mas como vou conseguir ir lá com todo esse peso? Eu… eu ainda não superei o Arcano. Como vou entrar lá?! — franziu o cenho, colocando uma mão sobre a boca. Sua preocupação transbordava para fora da mente.
— É um processo. Talvez nem eu tenha superado ele. Mas sabe, enquanto você estiver disposto a deixar tudo de ruim pra trás e seguir em frente, eu tenho certeza de que as pessoas vão te entender. O Arcano vai te entender.
Um sorriso tímido brotou em meu rosto, era bom perceber que conhecia o Arcano, não apenas como um lugar, mas como um alguém.
— Mas não se engane também — continuei —, algumas pessoas podem até te entender e não te perdoar pelas coisas que você fez, pelas coisas que você disse. Pandora pode não querer te perdoar, talvez por um bom motivo. Os magos podem não querer te perdoar, por um motivo completamente tosco. Mas essa é uma escolha na qual você não tem nenhum poder. Então não se preocupa, não carrega o peso que não cabe em você, no seu peito. Só tenta resolver as suas cagadas, arca com suas responsabilidades e… toca a vida, sabe?
— É… isso faz bastante sentido — ele respondeu, sua atenção fixada em mim.
— Escuta, eu não digo isso com frequência. Eu não erro. Então sinta-se privilegiado… Se a gente for no Arcano agora, você esquece esse surto de agora pouco?
Um sorriso surgiu nos lábios do mago, também nos meus. Era estranho, estava começando a entendê-lo. Estava começando a me enxergar naquele… jovem-velho brega. Talvez fosse o vinho, espero que tenha sido o vinho.
— Claro, meu amigo. — disse o mago, com uma expressão leve no rosto.
Cacete, como aquela palavra me fez gelar. Amigo? Do mago? Em que ponto havia chegado? Naquele momento, senti uma urgência para encerrar nosso encontro, para me afastar daquele ser, um pânico tomou conta de meu corpo.
— Então, vamos tomar uma no Arcano? — sugeri, sorridente.
É isso, é o fim, pensei. Era oficialmente parte do clubinho do mago brega. Nos entendíamos e não tinha como negar, mesmo que eu me esforçasse ao máximo. Minha mente podia dizer algo, meu corpo iria agir da forma que eu verdadeiramente me sentia. Que coisa.
— Vamos — Robert respondeu.
Seu sorriso era quase… malicioso?
Espera, pensei, tem algo nesse sorriso. E se eu tivesse perdido o controle sobre meu corpo?! E se fosse um feitiço? Estaria sendo manipulado o tempo todo? O que esse maldito mago fez comigo? Ou… será que eu só estava negando muito meus sentimentos carnais? No momento em que me levantei da cama, todas aquelas dúvidas urgentes se dissiparam.
Às vezes é bom só viver o momento, embraçar o embaraço.