“No Tarot Mitológico, O Louco é representado pelo deus Dionísio e simboliza os nossos impulsos de mergulhar no desconhecido e mudar. Assim como no tarot tradicional, ele representa a jornada que está começando.”
Por Danny ZurcPercebi que precisávamos desesperadamente de ajuda quando Erasto derrubou a sexta tigela de sopa de raízes antes do meio-dia.
O orc praguejou, reclamando que os utensílios eram pequenos demais para suas grandes mãos e recebeu como resposta uma chuva de xingamentos, no que aparentava ser feérico antigo, vindos da cozinha. Pelo tom, eu podia imaginar a carranca distorcendo o rosto bonito de Margot, que odiava desperdício — tanto da comida quanto do próprio tempo — mais do que qualquer outra coisa. Sempre tivemos esse tipo de acidente, porém, nos últimos meses, eles estavam cada vez mais frequentes. E eu sentia todo o bar ficando mais caótico, conforme a tensão aumentava.
Enquanto limpava o líquido viscoso da madeira desgastada, não conseguia deixar de pensar que, independentemente do quanto Pandora repetisse que o número de funcionários atual era mais que suficiente, o Arcano XXI precisava sim de um funcionário a mais — ou a menos.
Pendurei, com discrição, um anúncio no vidro da fachada, dizendo que precisávamos de reforços urgentes e que todos os interessados deveriam se apresentar ao balcão do bar para entrevista. Esperava que a mesma magia que alterava a aparência do bar em diferentes mundos também se encarregasse de traduzir minha mensagem.
Nesse horário, em dias de semana, apesar do certo alvoroço na cozinha, só costumávamos receber uma clientela pingada, distribuída em mesas ao longo do espaço, passando longe de ocupar sequer metade da capacidade. Isso significava que tinha a tarde praticamente livre para conversar com todos os seres que mostrassem qualquer interesse na vaga.
O primeiro foi um goblin mal-encarado. Olhos esbugalhados, dentes pontudos e mãos grandes que esfregava, em movimentos contínuos, ao olhar sedento para o caixa. Era bem provável que cogitasse nos assaltar se não fosse pelo acordo pacífico. Além disso, parecia mais que disposto a desviar uma ou outra moeda de ouro se o deixássemos sem supervisão por muito tempo. Acabou dispensado. Já tínhamos Roth, um demônio magricela, para cuidar do caixa e infernizar nossas mentes com discursos sobre como criptomoedas são o futuro da economia universal. Por mais chato que fosse, o demônio era muito útil. O Arcano recebia todo o tipo diferente de moeda e só ele conseguia lembrar as cotações exatas e as particularidades de cada conflito.
A segunda foi uma pixie, os longos cabelos cor-de-rosa quase escondiam as orelhas pontudas adornadas com diversas pedrinhas brilhantes. Estava apenas de passagem entre o mundo mortal e a Corte das Fadas. Pediu o drink da sereia, uma criação original minha, como se soubesse que era meu fraco, e gostou tanto que perguntei se não gostaria de ficar mais tempo conosco. Ela me deu uma risadinha, que soou como minúsculos sininhos de vento, e um número de telefone num papel lilás. Quando seus olhos encontraram os meus, senti o familiar arrepio que ia da base das minhas costas até as guelras, e fui atingido por uma onda suave de doçura, como uma nuvem de perfume. A sensação inebriante durou por longos segundos, mesmo após ela sumir em luz dourada, tocando uma rachadura em forma de asterisco na parede oposta. Sequer cobrei pelo drink.
O último foi um distinto dragão que veio pelas bebidas e não pela entrevista. Tinha sardas salpicadas por todo o rosto angular, contrastando com os olhos rubi, escuros pela magia; diversas tranças em um tom de ruivo flamejante formando um penteado elaborado até a metade das costas. Parecia bom o bastante, em seu terno alinhado e sapatos de couro no estilo trollês, para me fazer pensar que qualquer ser que tivesse tanto cuidado assim para se arrumar deveria ser capaz de levar um prato intacto até seu destino.
Ele não pareceu concordar comigo, rindo abertamente da minha cara quando lhe perguntei se tinha interesse em trabalhar conosco. Como se ser um engomadinho resolvendo negócios sombrios em chamadas longuíssimas e conversas sussurradas fosse melhor do que atender todo o tipo de ser num bar interdimensional. Para me impedir de substituir o vermute por essência de sapo em seu maldito dry martini, disse a mim mesmo que era ele quem saía perdendo. O que acabou compensando, no fim das contas, pela gorjeta mais do que generosa que ele deixou antes de partir por uma rachadura interligada ao Pandemônio.
Suspirei, frustrado pela busca se mostrar tão difícil. Imaginei que qualquer um gostaria tanto quanto eu de trabalhar no Arcano, mas isso talvez fosse só porque eu quis trabalhar num bar desde a primeira vez que entrei em um.
Lembro que ficava dentro de um transatlântico bastante elegante que visitei com minhas irmãs numa de nossas primeiras caçadas. Quando eu era mais jovem, tinham medo de ser muito arriscado me levar até a praia, então costumávamos invadir qualquer tipo de embarcação que ouvíssemos passar acima do nosso bairro, disfarçados de viajantes humanos. Elas usavam belos vestidos de seda, em cores berrantes, e grandes casacos de veludo. Eu também não ficava nada mal, com minha camisa de mangas largas, aberta perto do peito de propósito, e o cabelo molhado jogado para trás. Nesse dia em especial, elas cantaram e fizeram um verdadeiro banquete, mas eu preferi entrar no bar e conversei com diversos humanos a noite toda. Ouvi muitas histórias, senti atrações com sabores diversos e descobri que era assim que gostaria de viver todos os meus dias.
As canções das sereias eram de uma magia muito forte, que eu nem sempre me sentia confortável usando. Feitiços simples eram uma coisa, momentâneos e bons para conseguir favores. Já as canções podiam ter um custo terrível.
Não precisar cantar uma nota sequer era uma das razões pelas quais eu amava o Arcano. Além do cheiro das bebidas e das histórias sinceras, contadas por quem já bebeu demais para ter pudor, o principal era a facilidade que o bar proporcionava para que eu prendesse a atenção de criaturas bonitas. Seus sentimentos me saciavam mais do que qualquer alimento poderia.
O modo como molhavam os lábios e soltavam pequenos sons de prazer ao experimentar os drinks; a luxúria de seus pensamentos proibidos; tudo isso, literalmente, me mantinha vivo. Absorvia apenas um pouco do desejo de cada pessoa, mas nada que fizesse muito mal. Os humanos costumavam se sentir fracos ou um tanto tontos e culpavam o álcool; depois de uma boa noite de sono, porém, estavam novos em folha. Já seres mágicos sequer sentiam os efeitos adversos. Não conseguiria alimento mais fácil em nenhum canto dos sete mares.
O cargo de atendente talvez não fosse tão interessante quanto o meu. Mas não sabia, pois nunca desempenhara essa função específica. Quando recebi o convite de Pandora para entrar na equipe — que na época consistia apenas nela e Margot — não tinha mais de vinte e poucos anos, e toda a minha experiência de trabalho era resumida aos poucos meses que passei limpando o chão e apartando brigas em um quiosque de praia na costa brasileira.
Quando cheguei, o bar tinha necessidade de todo o tipo de serviços, e eu não sabia fazer quase nada. Enquanto Margot ficava na cozinha, Pandora atendia. Sua presença no bar era bem mais frequente do que é agora, quando as coisas meio que já funcionam por conta própria e ela pode passar mais tempo reclusa em sua casa, no andar de cima.
Comecei sem uma função definida, demorando a me encontrar. Trabalhei no caixa, mas nunca fui bom com dinheiro e as moedas de diferentes mundos eram complicadas demais pra mim. Também fiquei um tempo lavando louças, mas minha conversa insistente acabava tirando Margot do sério e era acertado por mais pratos do que conseguia limpar. Fui até mesmo xingado de todo o tipo de peste interdimensional quando tentei incluir sopa marítima no menu do Arcano — considerava um absurdo que tanto humanos, quanto seres mágicos não soubessem apreciar as delícias de um bom caldo de tinta de polvo com olhos de peixe-boi.
Cheguei a achar que vir tinha sido um erro e que eu deveria voltar à Talássea, mas então me apaixonei pela mixologia.
Sei que parte do meu sucesso como bartender se devia ao rosto bonito, cabelos encaracolados escuros, contrastando com os olhos quase verdes e uma pele negra clara, bem dourada pelo sol. Com um sorriso sugestivo e lábia fácil, mantinha os clientes falando e, por consequência, consumindo.
A outra parte eram as poções da velha botica, que às vezes eu incluía nas misturas para criar novas bebidas. Tinha aprendido como fazer toda a sorte de drinks humanos e mágicos em livros abandonados pelo antigo dono do lugar, que encontrei no porão.
Meu primeiro experimento com poções não consistia em um drink e sim em um relicário em forma de duas conchas douradas, que mantinha em meu pescoço a todo o momento. Injetei na joia, dada por minha mãe como lembrança de casa, um mix de poções de proteção, sorte e intuição. Sempre me impressionava com o quão eficiente era. Não caía em encantos de fadas ou em feitiços que afetassem o livre-arbítrio de forma geral.
Apliquei esse conhecimento nas bebidas, criando novas possibilidades de funções e sabores. Usava momentos como aquele, sem clientes ou interessados, para me concentrar em novas receitas. Naquela hora, desenvolvia um novo tipo de daiquiri, testando se fruta-de-fada seria uma boa substituta para limão. A intenção era deixar o drink mais doce e com leves propriedades de cura.
Me concentrava no conjunto de notas agridoces em minha língua quando ele entrou.
Pela porta entreaberta, o garoto trazia consigo as cores do pôr do sol de seu mundo. A luz fazia brilhar as laterais dos cabelos dourados, tornando-os quase brancos. Pensei que nunca tinha visto um elfo tão bonito, até notar que era humano. Apesar dos traços etéreos, finos e delicados, sua expressão o entregou: a boca entreaberta de leve e os olhos muito arregalados, num misto de fascínio e espanto. Também havia nele o sutil cheiro de mortalidade, típico dos humanos, mesclado a uma suave fragrância de incenso de louro. Tentou andar, mas pareceu meio tonto com a embriaguez típica do primeiro contato com uma magia tão poderosa quanto a daqui.
Busquei na memória como me senti ao entrar no Arcano pela primeira vez. Apesar de ainda não saber que o espaço era tão antigo quanto o tempo, lembro de ficar encantado com a mobília, de várias eras e de diversos mundos, sendo também significativamente maior do que a fachada sugeria.
Mas não era só isso, todo o lugar tinha um clima bem... mágico.
O humano finalmente soltou a porta, parecendo capaz de dar passos firmes em minha direção. Passou pelo palco sem notar o antigo piano marítimo — do tipo que eu sempre via sendo tocado nas cortes sereianas da minha terra natal — e segurou um pouco o fôlego ao observar uma escultura de quartzo roxo do que parecia ser uma guerreira, no estilo clássico da Corte das Fadas. Passou as mãos pelo veludo da poltrona vermelha que parecia saída dos rumores sussurrados sobre os escândalos dos bordéis do Pandemônio. Mesmo quando chegou ao balcão, seus olhos não me viam, analisavam com cuidado a imponente árvore atrás de mim.
Era o coração do bar, tanto por ficar bem ao centro, quanto por ser a fonte de todo poder do lugar. Dos veios da madeira, pequenos riscos dourados expunham, sem pudor, seu potencial mágico. Os humanos pareciam acreditar que eram apenas luzes destacando as rachaduras de uma árvore velha, mas na realidade, eram os minúsculos portais que se espalhavam por todo o bar, para tantos mundos, dimensões e tempos que um único ser jamais seria capaz de explorar todas as possibilidades.
Me perguntei se ele seria algum desses esquisitos fascinados por magia, extasiado por enfim encontrar o aclamado bar. Talvez soubesse o que as rachaduras eram e quisesse explorá-las, louco pela fama e status que alcançaria por ser o primeiro a visitar determinado mundo. Esse tipo formava a categoria mais cansativa de humanos, com perguntas que não terminavam nunca, sem dar ouvidos quando eu os dizia que não conseguiriam viajar sozinhos. Era mais provável que fosse apenas como a maioria, cético, procurando explicações humanas, alheio a toda a magia que via.
Percebi, conforme ele se aproximava, que não me importava. Adoraria responder às suas perguntas, quaisquer que fossem. A verdade é que não tinha nada que eu gostasse mais do que uma bela companhia, e quanto mais perto ele chegava, mais belo parecia.
Seus olhos finalmente encontraram os meus, mas apenas por um breve instante, antes de ele abaixar a cabeça, embaraçado.
— Bem-vindo ao Arcano XXI. — Mantive o olhar firme, exibindo um sorriso cheio de promessas. — Eu me chamo Romeo, como posso lhe servir essa noite?
— Boa tarde... — murmurou entorpecido e depois riu da própria confusão. — Na verdade, boa noite, né?
— Dizem que o tempo sempre passa de uma forma diferente no bar mesmo... — assegurei, aumentando o sorriso ao me inclinar para mais perto do balcão.
No Arcano isso era ainda mais real, já que ele ficava numa dimensão separada, que tinha seu próprio tempo. Por fim, ele concordou, sem parecer pensar muito sobre, continuando alheio às minhas investidas, assombrado com o ambiente a sua volta.
Perguntei-me por quanto tempo resistiria a me olhar… Será que estava fazendo algo errado? Não tinha o costume de lidar com atração masculina. Não que eu não gostasse, só não tinha tanta prática. Sereias geralmente são mulheres. Eu mesmo fui visto como uma por muito tempo, até notar que não era, e meu corpo se moldar ao modo como queria ser visto. É assim com a maioria dos sereias e normal para a nossa espécie, mas apesar disso, não havia ninguém como eu na minha família ou entre minhas amigas mais próximas.
— Não me leve a mal... — O som da voz dele me trouxe de volta à realidade. — Que tipo de bar é esse? Eu consigo ver que é temático, mas não consegui definir bem qual seria o tema...
Dei uma boa olhada nos outros clientes, pensando no quanto aquela era uma pergunta complicada de responder. Numa mesa distante, alguns dragões conversavam e eu fazia vista grossa para o contrabando que talvez trocassem. Ninfas riam e conversavam, parecendo traçar uma disputa de quantas esferas de fumaça colorida podiam expirar em uma única tragada do narguilé dourado no centro da mesa. Ali próximo, se revezando para tirar fotos uns dos outros em todos os espaços do bar, estava um grupo de humanos, com orelhas alteradas para ficarem tão pontudas quanto de elfos e tatuagens de runas cobrindo boa parte dos braços. Outra humana com um enorme chapéu de cogumelo se deliciava com um peach fizz não alcoólico de pêssegos élficos, ignorando as manchinhas brancas que surgiam nos lábios.
— Bom, somos um espaço mágico, um ponto de paz entre os mundos, se preferir — expliquei, e quando a expressão dele continuou confusa, continuei. — Um lugar seguro para expressar sua verdadeira essência e entrar em contato com mundos diferentes do seu. Não temos um tema específico, mas nunca se sabe o que vai se achar por aqui.
— Ah, é meio alternativo, então! Nossa, soa realmente interessante... — Seu sorriso, até então ininterrupto, pareceu se desmanchar. — Deve ser bom saber como é sua essência, acho que eu nem saberia por onde começar.
— Bom, costumamos começar com o álcool — respondi com uma piscadinha, enfileirando algumas taças no balcão — Falando nisso, tem algum em mente? Posso te indicar um mojito aquafluxo, ou sex on the beach clássico?
— Na verdade, vim por esse anúncio aqui! — admitiu, mostrando o papel que havia retirado da vitrine. — Olha, sei que vai parecer estranho, mas é muito importante que eu consiga um emprego hoje, acho que não posso nem voltar para casa sem ter um.
— Bom, pra sua sorte eu também não posso passar pelo turno da noite sem arranjar um novo atendente para a minha chefe. Mas preciso de um motivo além desse rostinho bonito para convencê-la de que você vai ser uma boa aquisição. — Não era mentira, Pandora poderia ser terrivelmente teimosa quando estava determinada, mas eu também era. Só precisava de argumentos convincentes e um currículo aceitável para fazê-la aceitar mais um funcionário no Arcano.
O humano pensou por alguns segundos.
— Bom, mesmo que eu nunca tenha trabalhado em um bar, já atendi muitos clientes na loja vegana da minha tia quando era mais novo, e era muito bom nisso. Gosto de lidar com o público, tenho metade de uma faculdade de administração... No geral, aprendo qualquer coisa bem fácil, de arco e flecha até primeiros socorros. Mas o importante mesmo é que eu canto e toco alguns instrumentos. Reparei que vocês têm um palco e se não tiverem um artista fixo, posso cantar, mesmo sem pagamento, recebendo só as gorjetas dos clientes.
A última parte me pegou de surpresa. Primeiro, porque ninguém trabalha de graça, e segundo, porque, humanos-músicos são milhares de vezes mais estressantes que humanos-maníacos-por-portais. Poucos seres têm uma audição tão boa quanto a das sereias, mas os humanos, em especial, escutam bem mal. Não conseguem se manter no tom e têm uma escala musical minúscula.
Nenhum sorriso brilhante compensa ter um humano desafinado como trilha sonora de todos os meus futuros flertes, já bastava a peste dos Dark Faeries, uma bandinha de humanos esquisitos que vinha fazer barulho quase toda sexta-feira à noite. A possibilidade parecia pior até do que continuar limpando o chão sujo de Erasto, e minha vontade era de mandá-lo de volta pela porta que entrou, porém, optei por respirar fundo e mantive a postura profissional.
— E se ouvíssemos um pouco? — indiquei, com o olhar, o piano azul meio escondido sob uma cortina de veludo que em algum momento foi dourada. — Toque e cante alguma coisa, mostre o que sabe fazer.
Os olhos mortais brilharam ao ver o instrumento, e foi bom ver que, mesmo depois de todos os anos, ele ainda causava esse efeito nas pessoas. Era de fato uma jóia para o meu povo, nunca soube como chegou aqui. O rapaz passou a mão pelos entalhes, sentindo as centenas de pequenos crustáceos e conchas, antes de abrir a tampa do teclado. Começou a dedilhar as teclas, entendendo a afinação do instrumento antes de iniciar uma melodia. Bastou tocar a primeira nota para todos os olhos se voltarem para ele. Não soava como a música das sereias, mas também não estava nada mal.
Até que ele começou a cantar.
A voz dele não era nada demais, poderia até ser considerada decente, para um humano, mas ainda precisava de muito trabalho. Agora a letra... Ela sim era um trabalho de poesia que eu jamais tinha ouvido igual.
O canto das sereias nos tornava o centro dos olhares de todos no recinto. Porém, nossas letras eram feitiços que tinham como única função atrair, se conectar com os desejos mais profundos do coração de quem ouvia. Falsas promessas de tesouros incríveis, de fantasias proibidas e de aventuras sem par. Havia um magnetismo crescente no ritmo hipnótico e nas vozes aveludadas. Eram uma isca para presas, uma demanda por um tipo muito específico, intenso e desvairado de atenção. A sensação de cantá-las era de poder, de estar no topo de todo o mundo, criando a ilusão de ter tudo. Mas, se cantássemos por tempo demais, ou invocássemos sentimentos muito profundos, elas tinham um potencial enlouquecedor para os ouvintes. Alguns nunca mais eram os mesmos.
O modo como esse humano cantava, porém, não tinha nada de magnético. A voz era trêmula e frágil, e a canção era tão, tão triste. Ele parecia inesperadamente vulnerável, falando sobre o grande medo que tinha de andar pelo mundo inteiro e não encontrar um lugar em que se encaixasse e que talvez esse lugar sequer existisse. E, por mais paradoxal que pudesse ser, ao cantar sobre desconexão, fez com que eu me sentisse profundamente conectado a ele.
Já fazia muitos anos desde que me senti do mesmo jeito que o eu lírico de sua canção, entretanto, não podia deixar de admitir que aquele era um sentimento familiar. Por mais carinhosas que minha mãe e irmãs fossem, eu sabia que nem elas poderiam me entender por completo, e passei muito tempo sentindo que minha casa não era realmente o meu lar. Foi uma das diversas razões que me fizeram partir. Só no Arcano XXI me encontrei de verdade; com as broncas de Margot, as histórias misteriosas ocasionais de Pandora e todo o fluxo dos mais bizarros seres que passavam pelas nossas portas, eu percebi que não era tão incomum quanto pensava.
Existe um tipo especial de beleza em estar entre os desajustados. Depois de ouvir esse humano, quis muito que soubesse disso, e que, um dia, ele também encontrasse o conforto que eu encontrei.
Talvez pudesse ser no próprio Arcano, se não fosse por um pequeno obstáculo que se manifestava na forma esguia de uma mulher de cabelo roxo caminhando decididamente para perto do palco. Saí do balcão às pressas, já visualizando a expressão de poucos amigos da minha adorada chefe. Se algo a incomodou o bastante para fazer com que ela saísse da própria casa, significava que estávamos em sérios problemas.
— Menino, quem lhe deu permissão para cantar aqui? — Inquiriu, fazendo o garoto dar um pulo de susto.
Até onde eu sabia, Pandora era mais humana do que fada, mas tinha uma imponência impossível de ignorar, especialmente quando algo fugia do que ela havia previsto.
— Pandora! — Abri os braços e o melhor sorriso, tentando desviar o foco de sua atenção. — Desculpa, fui eu. Assumo toda a responsabilidade por ele.
— Tinha que ser! Tá sem nenhum trabalho pra fazer?! — reclamou, parecendo mais cansada do que qualquer outra coisa, e se voltou ao jovem humano. — Enfim, quem é você?
— Eu me chamo Apolo, senhora — respondeu baixinho.
Parecia intimidado o bastante para ignorar que Pandora aparentava ser, no máximo, uns cinco anos mais velha que ele. Não era de fato, mas ele não teria como saber. Também notei que, provavelmente, fui indelicado por não ter perguntado seu nome, mas não pude deixar de sorrir ao pensar no quanto combinava com ele.
— Eu estava fazendo a entrevista para ser atendente aqui... — ele continuou.
— Entrevista? — repetiu Pandora, como se ouvisse a palavra pela primeira vez. E talvez fosse mesmo o caso. Tentei me lembrar de alguém do Arcano que tivesse feito entrevista para trabalhar aqui, e nenhum nome me veio à mente. Reza a lenda que Margot chegou e foi direto para cozinha, e a equipe atual foi escolhida a dedo por ela. Fui roubado de outro estabelecimento (provavelmente pelo carisma irresistível que emanava ao encerar o chão), o outro barman ninguém liga e Erasto foi uma recomendação de outro atendente. — Já temos o número perfeito de funcionários.
— Porém, precisamos de um atendente que seja bom… — falei baixo notando a expressão fechada de Erasto do outro lado do salão. — Se o problema for dinheiro, nem precisamos aumentar o número do pessoal. Consigo pensar em algumas criaturas que poderiam muito bem ser demitidas.
— Mas isso não cabe a você decidir, sopa de peixe-boi. — E deu o assunto por encerrado. Por mais que soubesse que nunca funcionava, tentei inutilmente usar algum encantamento para convencer Pandora quando seus olhos encontraram os meus, apenas para vê-la revirá-los ao notar a tentativa frustrada. — Sinto muito, Apolo. Não estamos contratando no momento e ninguém deveria ter dito o contrário.
O jovem humano concordou com a cabeça antes de ela desaparecer pela porta da cozinha. Ele parecia frustrado.
— Olha, eu sei que parece ruim, mas ela perceberá que precisamos de gente, mais cedo ou mais tarde — garanti, mas vi que já não acreditava em mim. — E, quando isso acontecer eu já sei o seu nome.
Apolo sorriu fraco em resposta. Não sabia porque ele precisava de um emprego com tanta urgência, mas parecia ser muito importante. Até me senti meio culpado, de alguma forma, por desperdiçar o tempo dele, mas não tinha muita prática em pedidos de desculpas e sequer saberia por onde começar. Apolo olhou para a porta e depois para os arredores, saboreando a visão do bar como que em despedida.
Só então olhou para mim, como eu quis que fizesse durante toda a nossa conversa, mas não senti absolutamente nada. Era uma atenção vazia, sem arrepios ou deleite algum.
O brilho com que Apolo entrou parecia apagado.
— Acho que vou para casa — murmurou, e antes de sair se virou para dizer: — Prazer em conhecer, Romeo, eu volto quando der.
— O prazer é meu — respondi, alguns segundos depois dele já ter atravessado a porta.
≋ ♆ ≋
Conforme os dias passavam, um burburinho foi se formando sobre o garoto humano, de aparência deífica, que cantou durante o horário de almoço. Alguns dos presentes no dia contaram para os amigos, que contaram para mais gente. Toda vez que era repassada, a história aumentava um pouco mais, criando certa expectativa, tanto sobre a voz quanto sobre a aparência de Apolo. Eu fazia cara de paisagem sempre que me perguntavam quando Apolo voltaria a cantar. Fingia saber, com ares de segredo, mas, na verdade, estava tão sem notícias quanto qualquer um deles, esperando que ele realmente voltasse como disse que faria.
Pandora continuava torcendo o nariz para a ideia.
— Você devia parar de ser teimosa e dar ao povo o que ele quer — provoquei, naquela mesma semana. Os almoços estavam mais cheios e a pilha de pratos quebrados também.
— Bom, se ele aparecer de novo pode ficar com a vaga — cedeu Pandora, após inúmeras conversas —, mas tente manter certa distância. Ele não é como você, a Margot ou eu. Não vá atrás dele, se o destino quiser que ele volte, virá sozinho.
Pelo seu olhar de pena, parecia preparar um longo discurso sobre eu “ainda não saber o que é a perda” ou sobre como a vida humana pode deixar feridas que permanecem por muito tempo. Acenei com a cabeça, e fui cuidar de meus próprios assuntos, achando a reação toda um exagero.
Era um ponto de discordância entre nós. Eu acreditava que viver pouco era mais uma razão para viver bem. E se preocupar por eu me relacionar com humanos não fazia sentido, já fiz isso algumas vezes. Não voltei a ver muitos dos seres que passaram pelo bar e não achava ruim: conhecia as pessoas, ouvia suas histórias, seus medos e seus sonhos. Trocávamos carícias e promessas, conscientes de que eram impossíveis de cumprir, e então elas partiam.
Umas ou outras voltavam. Conversávamos, entre bebidas, sobre o que aconteceu em todo o tempo que passamos separados e, no fim do turno, sabiam que poderiam ter a minha companhia por quantas noites quisessem. Outras não voltavam jamais, o destino as levavam a lugares diferentes do Arcano, e eu torcia para serem felizes, onde quer que estivessem. Tinha bastante consciência de que alguns encontros duram apenas uma noite e não são menos importantes por isso. Era tão rápido em me apaixonar quanto em superar.
Mas, até mesmo eu precisava admitir que era frustrante quando algo acabava sem sequer ter começado. Havia algo na incompletude que me incomodava, possibilidades infinitas que poderiam nunca levar a nada. Não fazia sentido pensar sobre isso. Sequer sabia por onde começar a procurar Apolo, de qualquer forma. O sotaque parecia nova-iorquino, mas o bar tinha portas e fachadas em vários países do reino mortal e ele podia muito bem viver em qualquer um deles. A visão da sua expressão triste ao sair me enchia de pena, então evitava pensar sobre ele.
Desde sua visita, porém, vez ou outra me pegava cantarolando uma mesma melodia.
≋ ♆ ≋
Dias depois, comecei a sentir um certo desgaste no corpo, o tipo conhecido de sede, que não ia embora, não importava quanto líquido eu bebesse. Quando um metamorfo me entregou um pomposo convite de casamento, decidi que definitivamente precisava de sal, algumas explicações e abraços de uma dúzia de irmãs.
Na manhã seguinte, avisei à Pandora que tiraria o dia de folga e desci as escadas para o porão. Peguei no estoque duas garrafas do meu vinho preferido e me dirigi ao meu quarto clandestino.
A problemática de ter onde morar era mais simples na época que trabalhava no quiosque, porque recebia em dinheiro humano e pagava do mesmo modo. No Arcano, recebia gorjetas em todo o tipo de moeda, então preferia só guardar, dizendo a mim mesmo que um dia faria coisas incríveis com a quantia. Morava então em um canto do porão; espaço que arrumei sozinho, montando um pequeno refúgio usando algumas das mobílias que eram menos usadas na parte de cima.
Um banco redondo com pequenos desenhos de crustáceos se transformou numa mesa de cabeceira; e um imenso baú de madeira, com pontas feitas de ouro, tinha o tamanho perfeito para que eu pusesse um colchonete em cima — ainda servindo para guardar todas as roupas e pertences. O melhor de tudo era a rachadura próxima à “cama”: mais dourada e brilhante do que qualquer outra, com cheiro de brisa marítima. Às vezes, no escuro, deitado ao lado dela, podia até ouvir o barulho de ondas distantes se chocarem contra os navios que ousavam explorar a superfície de Talássea.
Ao me aproximar, ela brilhou com mais intensidade, unindo sua magia a minha. Mentalizei a minha cidade natal com toda a fidelidade que podia. As lembranças me preencheram: o cheiro, a sensação reconfortante de respirar água salgada, as músicas que as crianças cantavam ao brincar no centro da praça, as correntes marítimas, com centenas de caudas balançando juntas, como em um enorme cardume e, antes que percebesse, estava lá. Voltar a minha forma de sereia era como esticar as pernas após passar horas sentado, ou tirar uma peça de roupa que até então havia esquecido o quão incômoda era.
Rodopiei na água, alongando a coluna no meio de um turbilhão de bolhas. Estava na praça de sempre, que não chegava a ser tão movimentada quanto as da capital, Atlantis, mas ainda era um ponto de encontro popular em Talássea. Acenei para Methis, uma das guardas mais antigas da fronteira, que me conhecia desde a infância, e peguei a corrente marítima mais próxima para ir para casa. Os grandes prédios, cobertos de recifes de corais multicores, foram diminuindo de tamanho conforme a água me carregava até o meu bairro, um lugarzinho modesto e relativamente pacato.
Minhas irmãs devem ter me ouvido chegar, porque Helena, a mais nova entre todas, estava esperando na porta e pulou em meus braços antes mesmo de eu atravessar o pequeno cercado. Quando ela nasceu, eu já não morava mais aqui, mas isso não interferiu em nossa ligação. Helena parecia a mais radiante de todas quando eu voltava para casa.
Ophélia, uma das mais velhas, desfez meu penteado como costumava fazer quando éramos menores, antes de Cassandra me puxar para dentro, aflita, para me atualizar de todas as fofocas.
— Cadê Rosalina para explicar isso aqui? — Tirei da bolsa o convite, enfeitado de pérolas e outros frufrus, e elas soltaram risadinhas.
— Ela e a mãe foram conhecer a família do noivo. — Cassandra parecia extasiada em ser a primeira a contar as novidades. — São uns humanos sem graça que moram na costa do Mediterrâneo, em Barcelona se lembro bem.
— E como a mãe tá com isso?
— Não está feliz né? Mas, a gente aceita. Ela não entende porque Rosalina quer passar toda a vida dela com um parceiro só, mas atura porque ela parece gostar muito dele. Quer que ele viva tanto quanto ela e possa visitar a cidade também, sabe?
Estava familiarizado com as regras do casamento sereiano com outros seres: duas vidas se tornando uma, imunidade aos encantos, garantia de respiração aquática para o parceiro e impossibilidade de se alimentar dele para a sereia. Não parecia muito justo para nossa espécie, talvez por isso fosse tão raro. Entre sereias era mais raro ainda, todas nós já tínhamos tudo isso.
Os habitantes do mar prezavam a liberdade mais do que qualquer outra coisa. O oceano era enorme, com correntes que podiam levar a qualquer ponto do mundo em poucos instantes, além dos portais e da superfície. Minha mãe nunca casou, ao invés disso, viajou diversos mundos e conheceu toda a sorte de seres interessantes. Não precisava de um parceiro romântico para acompanhá-la para sempre — era para isso que tinha a gente, nascidos dos que ela amou mais. Valorizávamos outros tipos de relação por aqui, em especial a família e a amizade. As relações que são de fato feitas para durar.